sexta-feira, 17 de abril de 2009

A iguana Catarina

Quando adormeci, eu tinha uma iguana. O sonho insistia em se apresentar como realidade lembrada, mesmo eu tendo certeza de sua origem de fantasia lembrada. Pois bem, havia uma iguana, e era toda minha. Era pequenina, na verdade não sei o que a distinguia de uma lagartixa, talvez seus movimentos menos automatizados. De escamas verde-azuladas com olhos de uma carência muito evidente, me fitava, ali, quieta no seu canto. Dei por encará-la, e tentar entender o que se passava na cabecinha daquele réptil minimizado.

Suprimentos havia de sobra em seus potes de comes e bebes, fome ou sede não devia ser. Talvez um afago lhe bastasse. Aproximei-me aos poucos daquele serzinho, que há pouco não existia em minha vida, e tentei lembrar de qualquer intimidade que teríamos tido em um tempo antigo imaginado. Invadiu os meus ouvidos um som muito estranho e organoléptico, vindo de repente e de lugar nenhum. A voz que ressonou o tal nome causou frio no ouvido, algo que percebi também ser úmido, escuro e rouco: “Catarina”, disse. Olhei bem naqueles olhos pegajosos suplicantes e pude jurar que ela sutilmente balançou a cabeça em acordo com o escutado. "É seu nome, ora pois!", deduzi. E ela continuou, ainda com mais vontade, sua reverência positiva.

O que mais me surpreendeu foi não ter ficado surpreendido, eu esperava tudo. Quis deitar ao seu lado, me sentia como quem tinha perdido a memória e achou uma grande companheira de antes que ajudaria a reavivar minha história. Deitei, e ficamos ali nos encarando pelo que parecia uma eternidade. De segundo em segundo, as lembranças que não existiam ficavam mais vivas em mim.

Descobri que ela era meu único contato com o mundo vivo, depois de ter decidido me isolar numa montanha russa (não falo daqueles ferros imensos justapostos para diversão de pessoas, e sim de um acidente geográfico localizado em terreno gelado e russo) alguns anos antes. Nos comunicávamos perfeitamente sem o soar de uma palavra, aquele entendimento mútuo tão eficaz me fazia dessaudalizar (não mais sentir falta) dos relacionamentos humanos, no qual esse entendimento era tão raro. Nessa escolha minha de morar numa montanha longe dos demais, tive que me afastar dos amigos queridos e irmãos de árvore genealógica. Deles sim, eu sentia saudade. Mas conseguia me comunicar com eles todos os dias através do coração, funcionava como um telefone ou como a internet, só que não custava nada de dinheiro, do qual eu era totalmente destituído.

Eu havia me encontrado naquela montanha, com Catarina. E acho que nunca houve sensação melhor que essa.

Com frio e tristeza, despertei! Por um segundo de extrema expectativa, achei que o frio vinha das montanhas, e que eu realmente estava lá. Mas logo percebi que era só a ausência do cobertor a razão de meus pés estarem gélidos. Apesar de digerir essa realidade um tanto quanto cortante, eu estava feliz com a lembrança fantasiada. Senti a mudança de Catarina em mim, mesmo acordado. Foi um sonho gostoso de se sonhar.

2 comentários:

  1. Talvez a iguana seja a materialização dos seus amigos e parentes. Ela apareceu pra mostrar que você não estava sozinho, mesmo estando em montanhas na Rússia, e que, para se encontrar, não precisaria estar. Você se encontraria ali, entre o sentimento daqueles que te querem bem. :)

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  2. Não é uma obrigação (e ainda assim, se faz) que um blogueiro retribua um comentário no seu blog com outro comentário no blog do comentador. Mas sinto-me obrigado a comentar sobre esse texto, esteja ele na internet ou num livro na minha mesa de cabeceira, é da natureza humana (a comunicativa) que vem a obrigação.

    Diz-se que todos nós temos uma fortaleza interna, que poderia se chamar o nosso "íntimo". Acredito que a expressão "olhar para dentro de si" leva diretamente a esse lugar e, eles podemo ser perfeitamente localizados em monatnhas gélidas. A iguana parece-me, daqui de longe, a ligação entre tu e tu, é por ela que falas para ti mesmo da tua tristeza em estar só, fisicamente, e da tua alegria em saber que espiritualmente tens a todos os teus amigos. Precioso texto.

    Hoje, sonhar me é um privilégio raro. Então vivo entre sonhar acordado e saber do sonho dos outros - como o do autor do texto.

    Abraços,
    Diogo.

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